Altas habilidades/superdotação: mais do que talento, um universo de complexidades e possibilidades
Por Cleonice F Andrade
Quando se fala em altas habilidades/superdotação (AH/SD), a imagem que costuma vir à mente é a de crianças prodígio resolvendo equações complexas ou dominando instrumentos musicais com maestria. Mas essa visão é apenas a ponta do iceberg. A superdotação é um fenômeno multifacetado que envolve não apenas desempenho excepcional, mas também potencial, emoções, contexto social e necessidades educacionais específicas. Reconhecer essa complexidade é essencial para compreender e apoiar adequadamente esses indivíduos.
Histórico e evolução do conceito
A trajetória do estudo sobre AH/SD é marcada por mudanças significativas. No início, acreditava-se que o talento extraordinário era fruto exclusivo do ambiente social e cultural. Essa visão começou a ser revista no século XX, com o avanço da psicologia e o desenvolvimento de métodos para identificar habilidades excepcionais.
Um marco importante foi o trabalho de Lewis Terman, em 1921, com a criação da Escala de Inteligência de Stanford-Binet. Terman também conduziu um estudo longitudinal com crianças superdotadas — conhecido como Estudo de Terman — que revelou que, em geral, essas crianças alcançavam sucesso acadêmico, profissional e pessoal ao longo da vida.
A partir da década de 1970, o foco dos estudos se ampliou. Pesquisadores passaram a considerar não apenas o desempenho acadêmico, mas também aspectos como criatividade, liderança e habilidades sociais. Foi nesse período que o termo “altas habilidades” começou a ganhar espaço, substituindo “superdotação”, que carregava estigmas e interpretações limitadas.
Hoje, entende-se que AH/SD resulta de uma combinação de fatores genéticos, ambientais e emocionais. Além disso, há uma valorização crescente da diversidade de talentos e da forma como eles se manifestam em diferentes contextos — seja na arte, na ciência, no esporte ou na resolução criativa de problemas.
O que define uma pessoa com AH/SD?
Segundo a literatura científica atual e diretrizes do Ministério da Educação (MEC), indivíduos com AH/SD apresentam desempenho ou potencial significativamente acima da média em áreas como:
• Capacidade intelectual geral
• Aptidão acadêmica específica
• Pensamento criativo ou produtivo
• Liderança
• Talento artístico
• Habilidades psicomotoras (como esportes)
Além disso, são considerados aspectos como facilidade de aprendizagem, envolvimento com tarefas de interesse e originalidade no pensamento.
Natureza ou criação? O que dizem as pesquisas
Modelos contemporâneos, como os propostos por Joseph Renzulli e François Gagné, mostram que a superdotação vai além do QI. Ela envolve motivação, criatividade, ambiente favorável e oportunidades de desenvolvimento. A interação entre predisposições genéticas e estímulos ambientais é essencial para que o potencial se transforme em realização.
Desafios invisíveis: nem tudo é brilho
Apesar do talento, muitas pessoas com AH/SD enfrentam obstáculos emocionais e sociais. Entre os desafios mais comuns estão:
• Ansiedade e perfeccionismo
• Baixa autoestima
• Isolamento social
• Desmotivação escolar (especialmente quando não há estímulo adequado)
Essas dificuldades são frequentemente negligenciadas, pois o foco tende a recair apenas no desempenho acadêmico. No entanto, o desenvolvimento socioemocional é tão crucial quanto o cognitivo.
Reflexões de Mayra Gaiato sobre superdotação
A especialista em autismo infantil Mayra Gaiato traz uma abordagem sensível e esclarecedora sobre superdotação, destacando que ela representa um modo singular de ser inteligente, presente em até 10% da população. Segundo Mayra, as altas habilidades não se limitam ao desempenho acadêmico, podendo se manifestar em áreas como arte, motricidade e esportes — como exemplificado por atletas de elite. Ela explica que a superdotação envolve um tripé: desempenho muito acima da média, comprometimento intenso com a tarefa e criatividade na resolução de problemas. Mayra também alerta para os desafios sociais enfrentados por crianças superdotadas, como bullying e dificuldades de integração, e reforça a importância de cuidar da saúde mental e da socialização. Além disso, ela chama atenção para o risco de banalização do termo “altas habilidades”, que pode levar à confusão com talentos comuns ou transtornos como TDAH. O diagnóstico, segundo ela, deve ser feito por uma equipe multidisciplinar, com atenção aos possíveis quadros associados, como autismo ou hiperfoco restrito, garantindo um olhar cuidadoso e individualizado para cada criança.
Estereótipos sobre superdotados: desfazendo mitos
A superdotação ainda é cercada por ideias equivocadas que podem prejudicar o reconhecimento e o apoio adequado. Entre os mitos mais comuns estão:
• “São todos gênios”: Nem todo superdotado é brilhante em todas as áreas. Muitos têm talentos específicos e podem apresentar desempenho mediano em outras.
• “São solitários e desajustados”: Embora alguns prefiram momentos de introspecção, muitos são sociáveis e bem adaptados.
• “São naturalmente bem-sucedidos”: O sucesso depende de múltiplos fatores, como acesso a oportunidades, apoio emocional e contexto familiar.
• “São perfeccionistas e exigentes”: Embora o perfeccionismo seja comum, não é uma regra universal.
• “Não precisam de ajuda”: Superdotados também enfrentam desafios e precisam de orientação, apoio psicológico e estratégias educacionais adequadas.
• “São todos iguais”: A superdotação se manifesta de formas diversas. Cada indivíduo tem um perfil único de habilidades, interesses e necessidades.
• “Têm sucesso em todas as áreas”: Talento em uma área não garante sucesso em outras. Assim como qualquer pessoa, superdotados têm pontos fortes e vulnerabilidades.
Desconstruir esses estereótipos é essencial para promover uma abordagem mais inclusiva e empática.
O papel da escola e da família
A identificação precoce e o atendimento educacional especializado são fundamentais. Isso inclui:
• Programas de enriquecimento curricular
• Aceleração de estudos quando apropriado
• Mentorias e oficinas criativas
• Apoio psicológico e orientação familiar
A escola deve ser um espaço de acolhimento e desafio, onde o potencial é nutrido e a diversidade de talentos é valorizada.
Conclusão: reconhecer, apoiar e transformar
Reconhecer as altas habilidades/superdotação é mais do que identificar talentos — é compreender a complexidade do ser humano em sua totalidade. Pessoas com AH/SD não são apenas brilhantes em uma área específica; elas carregam consigo uma sensibilidade aguçada, uma curiosidade intensa e, muitas vezes, uma necessidade profunda de pertencimento e compreensão.
Para que esse potencial se transforme em realização pessoal e contribuição social, é essencial que famílias, escolas e políticas públicas estejam alinhadas em oferecer estímulo, acolhimento e suporte emocional. Isso significa investir em práticas pedagógicas inclusivas, formação de educadores, redes de apoio psicológico e ambientes que celebrem a diversidade de talentos.
A superdotação não é um privilégio — é uma responsabilidade compartilhada. Quando bem compreendida e acompanhada, ela pode ser uma força transformadora, capaz de gerar inovação, empatia e progresso em múltiplas dimensões da sociedade.
Reconhecer é o primeiro passo. Apoiar é o caminho. Transformar é o destino.Cleonice F Andrade
Psicóloga Clínica Especialista e Perita Judicial

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