Por que o Silêncio Fala? Entendendo a Mudez Seletiva em Adultos Autistas

Por: Cléo Andrade 

Você já se perguntou por que alguém pode conversar livremente em um momento e, de repente, ficar completamente mudo em outro, mesmo querendo falar? Esse fenômeno, conhecido como mudez seletiva, é mais comum do que se imagina, especialmente em adultos autistas, incluindo aqueles com TDAH ou superdotação. Como especialista em terapia cognitivo-comportamental (TCC), quero explorar, de forma clara e acessível, o que é a mudez seletiva, por que ela afeta tanto pessoas autistas e como podemos oferecer apoio com base em uma abordagem compassiva e neurodiversa. Este ensaio se inspira em estudos e perspectivas como as apresentadas no artigo “Selective Mutism in Autistic Adults” do site Embrace Autism, mas traz uma visão única, integrando conceitos da TCC para esclarecer e engajar.

O que é mudez seletiva?

Na psicologia, a mudez seletiva é definida como a incapacidade persistente de falar em situações sociais específicas, apesar de a pessoa ter habilidades linguísticas normais em outros contextos. Diferentemente do que o nome pode sugerir, “seletiva” não implica escolha consciente. É uma resposta automática do sistema nervoso, frequentemente desencadeada por ansiedade, sobrecarga sensorial ou estresse emocional intenso (Porges, 2011). Em termos da TCC, podemos entender isso como uma resposta condicionada, onde o cérebro associa certas situações a uma percepção de ameaça, levando a um “desligamento” da fala como mecanismo de proteção.

Para adultos autistas, a mudez seletiva pode se manifestar de forma sutil e situacional. Por exemplo, uma pessoa pode ser eloquente em casa, mas ficar incapaz de responder em uma reunião de trabalho ou ao discutir temas emocionalmente carregados, como conflitos pessoais. Essa resposta não reflete falta de vontade, mas um estado de hiperativação do sistema nervoso autônomo, que prioriza a sobrevivência acima da comunicação (Kozlowska et al., 2015).

Por que adultos autistas são mais vulneráveis?

O transtorno do espectro autista (TEA) é caracterizado por diferenças na comunicação social, comportamentos repetitivos e sensibilidades sensoriais intensas. Essas características, combinadas com a mudez seletiva, criam um cenário único. Estudos indicam que até 63% das crianças com mudez seletiva também atendem aos critérios para autismo, e 80% apresentam traços autísticos significativos (Steffenburg et al., 2018; Klein et al., 2019). Embora a pesquisa em adultos seja limitada, a sobreposição é clara: a mudez seletiva é subdiagnosticada em autistas, muitas vezes mascarada por estratégias de coping, como o “masking” (camuflagem social).

Do ponto de vista da TCC, a vulnerabilidade dos autistas à mudez seletiva pode ser explicada por três fatores principais:

  1. Sobrecarga sensorial e emocional: Autistas frequentemente experimentam hiper-reatividade sensorial, onde estímulos como barulho ou luzes intensas podem disparar uma resposta de estresse. Isso ativa a amígdala, o centro de detecção de ameaças do cérebro, desencadeando um estado de “flop” (colapso) descrito na teoria polivagal (Porges, 2011). Em termos cognitivo-comportamentais, isso pode ser visto como uma resposta automática a um estímulo aversivo, dificultando a regulação emocional.
  2. Dificuldade na regulação emocional: Muitos autistas, especialmente aqueles com TDAH ou superdotação (os chamados “duplamente excepcionais” ou 2e), enfrentam desafios na regulação emocional. A intensidade emocional, combinada com dificuldades executivas, como alternar tarefas ou gerenciar impulsos, pode amplificar a probabilidade de shutdowns (Shaw, 2014). Na TCC, isso se alinha com a ideia de “distorções cognitivas automáticas”, onde o cérebro interpreta situações como mais ameaçadoras do que são, desencadeando respostas de evitação, como a mudez.
  3. Condicionamento aprendido: A TCC enfatiza como experiências repetidas moldam comportamentos. Quando um autista vivencia repetidos episódios de mudez seletiva em contextos específicos (como falar em público), o cérebro pode criar uma resposta condicionada, antecipando o estresse e “desligando” a fala preemptivamente (Levine, 2010). Isso explica a ansiedade antecipatória, um fenômeno comum onde o medo de não conseguir falar intensifica o silêncio.

Como a mudez seletiva se manifesta?

Diferentemente das crianças, onde a mudez seletiva pode se apresentar como silêncio total em ambientes como a escola, em adultos ela é mais específica. Pode se manifestar como:

  • Silêncio em temas sensíveis: A incapacidade de falar sobre tópicos emocionalmente difíceis, como críticas ou traumas pessoais.
  • Congelamento físico: Além da perda da fala, o corpo pode ficar rígido, refletindo uma resposta de imobilização do sistema nervoso.
  • Ansiedade antecipatória: O simples pensamento de enfrentar uma situação desafiadora pode desencadear pânico e mudez (Kozlowska et al., 2015).

Na TCC, essas manifestações podem ser entendidas como respostas de evitação comportamental, onde o cérebro busca proteger a pessoa de uma percepção de perigo. No entanto, é crucial distinguir que, para autistas, essa evitação não é apenas psicológica, mas profundamente neurobiológica, enraizada em uma resposta de sobrevivência.

O impacto da vergonha e do capacitismo internalizado

Um aspecto frequentemente negligenciado é o impacto emocional da mudez seletiva. Muitos adultos autistas internalizam mensagens negativas de um mundo que valoriza a fluência verbal e a conformidade social. Essa internalização, conhecida na psicologia como capacitismo internalizado, leva a sentimentos profundos de vergonha e inadequação. A pessoa pode acreditar que sua incapacidade de falar é um “defeito” pessoal, quando, na verdade, é uma resposta adaptativa do sistema nervoso (Kozlowska et al., 2015).

Na TCC, trabalhamos para desafiar essas crenças disfuncionais por meio da reestruturação cognitiva, ajudando a pessoa a reconhecer que a mudez seletiva não é uma falha, mas uma tentativa do corpo de protegê-la. A metáfora de um animal que se “finge de morto” para sobreviver a um predador, como descrita por Levine (2010), pode ser útil para normalizar essa experiência e reduzir a autocrítica.

Como a TCC pode ajudar?

A terapia cognitivo-comportamental oferece ferramentas valiosas para apoiar adultos autistas com mudez seletiva, sempre com uma abordagem neurodiversa que respeita suas diferenças. Aqui estão algumas estratégias:

  1. Psicoeducação: Explicar a mudez seletiva como uma resposta neurobiológica, não uma escolha, ajuda a reduzir a vergonha. Ensinar sobre a teoria polivagal e o papel do sistema nervoso autônomo pode empoderar a pessoa a entender seu corpo (Porges, 2011).
  2. Exposição gradual com consentimento: Na TCC, a exposição gradual é usada para desensitizar respostas de ansiedade. Para a mudez seletiva, isso pode envolver abordar temas sensíveis em pequenos passos, sempre respeitando o ritmo da pessoa (Oerbeck et al., 2018). Por exemplo, começar escrevendo sobre um tópico difícil antes de tentar discuti-lo verbalmente.
  3. Técnicas de regulação emocional: Práticas como respiração diafragmática ou mindfulness podem ajudar a acalmar o sistema nervoso, reduzindo a ativação da resposta de “flop”. Essas técnicas fortalecem a capacidade de permanecer no “modo de conexão social” descrito por Porges (2011).
  4. Alternativas à fala: Oferecer opções como escrita, mensagens de texto ou desenhos pode reduzir a pressão e aumentar o senso de agência. Isso alinha-se com a TCC ao promover comportamentos adaptativos alternativos.
  5. Criação de segurança relacional: O ambiente terapêutico deve ser um espaço de aceitação incondicional, onde a pessoa não se sinta julgada por seus silêncios. A TCC enfatiza a importância da aliança terapêutica para promover mudanças duradouras.

Conclusão: Um convite à compaixão

A mudez seletiva em adultos autistas é mais do que silêncio – é uma história de sobrevivência, resiliência e luta invisível. Como terapeutas cognitivo-comportamentais, nosso papel é ajudar essas pessoas a entenderem que seus silêncios não são falhas, mas sinais de um sistema nervoso tentando protegê-las. Ao oferecer psicoeducação, estratégias práticas e, acima de tudo, um espaço de aceitação, podemos transformar o silêncio de isolamento em um silêncio de esperança.

Por que o silêncio fala? Porque ele carrega a voz de um corpo que está fazendo o melhor que pode. E quando ouvimos com compaixão, podemos ajudar a dar voz a quem luta para ser ouvido.

Fontes:

  • Klein, E. R., et al. (2019). Symptoms of Selective Mutism in Non-clinical 3- to 6-Year-Old Children: Relations With Social Anxiety, Autistic Features, and Behavioral Inhibition.
  • Kozlowska, K., et al. (2015). Fear and the Defense Cascade: Clinical Implications and Management.
  • Levine, P. A. (2010). In an Unspoken Voice: How the Body Releases Trauma and Restores Goodness.
  • Oerbeck, B., et al. (2018). Treatment of selective mutism: a 5-year follow-up study.
  • Porges, S. W. (2011). The Polyvagal Theory: Neurophysiological Foundations of Emotions, Attachment.
  • Shaw, P. (2014). Emotion Dysregulation in Attention Deficit Hyperactivity Disorder.
  • Steffenburg, H., et al. (2018). Children with autism spectrum disorders and selective mutism.
  • Artigo base: “Selective Mutism in Autistic Adults”, publicado em 27 de abril de 2025, disponível em https://embrace-autism.com/selective-mutism-in-autistic-adults/.

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