A Escalada da Violência Contra a Mulher no Brasil: Um Chamado à Conscientização e Reflexão
Por Cleonice de F de Andrade, Psicóloga experiente em atendimento a vítimas de violência contra a mulher, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC)
Um Problema que Não Pode Ser Ignorado
Como psicóloga atendendo mulheres que sofreram violência, posso afirmar: a violência contra a mulher é uma ferida profunda na nossa sociedade. Os números são alarmantes. Segundo dados do Ministério da Saúde, apresentados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), os registros de violência doméstica, sexual e outras formas de violência contra mulheres no Brasil cresceram de 113.476 em 2013 para 302.856 em 2023. Isso significa que, em apenas uma década, o número de casos notificados quase triplicou. E esses são apenas os casos que chegam ao sistema de saúde – muitos outros permanecem em silêncio, escondidos por medo, vergonha ou falta de apoio.
Neste artigo, vou explicar, por que a violência contra a mulher é um problema tão grave, por que tantas leis são necessárias para proteger as mulheres e como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) pode ajudar as vítimas a reconstruírem suas vidas. Também vou responder a uma crítica comum de alguns homens que questionam essas leis, alegando que “as mulheres se aproveitam” ou perguntando “e quando é o homem que sofre violência?”. Meu objetivo é conscientizar a população e convidar todos a pensarem sobre esse tema tão urgente.
O Crescimento da Violência: O que os Números Nos Dizem?
Os dados do SINAN mostram uma realidade preocupante. Em 2013, foram registrados 113.476 casos de violência contra mulheres no Brasil. Esse número cresceu ano após ano, com uma pequena queda em 2020 (155.193 casos), provavelmente por causa da pandemia de COVID-19, que dificultou o acesso das mulheres a serviços de saúde e denúncias. Mas, a partir de 2021, os números voltaram a subir: 187.204 casos em 2021, 216.024 em 2022 e, em 2023, o pico de 302.856 registros. A região Sudeste lidera com 152.011 casos, seguida pelo Nordeste, com 56.829.
O que isso significa na prática? Que, em 2023, quase 303 mil mulheres buscaram ajuda por terem sofrido algum tipo de violência – seja física, sexual, psicológica ou doméstica. E esses números não mostram a realidade completa, porque muitas mulheres não denunciam. Algumas têm medo de represálias, outras acham que “não vai adiantar nada”, e há aquelas que foram ensinadas a acreditar que “apanhar do marido é normal”. Como psicóloga, já ouvi frases como: “Ele me bateu, mas foi porque eu o provoquei” ou “Se eu denunciar, quem vai sustentar meus filhos?”. Esses pensamentos são reflexos de uma cultura que, por muito tempo, normalizou a violência contra a mulher.
Por que Tantas Leis para Proteger a Mulher?
No Brasil, temos leis importantes como a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), que protege mulheres contra a violência doméstica, e a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), que torna o assassinato de mulheres por razões de gênero um crime mais grave. Mas por que precisamos de tantas leis específicas para as mulheres?
A resposta é simples: porque, historicamente, as mulheres sempre foram mais vulneráveis à violência, especialmente dentro de casa. Durante séculos, a sociedade aceitou que o homem “mandasse” na mulher, como se ela fosse uma propriedade. Até poucas décadas atrás, era comum ouvir que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Isso fazia com que muitas mulheres sofressem em silêncio, sem apoio da família, da polícia ou da justiça.
Hoje, as leis existem para mudar essa realidade. Elas garantem que a mulher tenha proteção, como medidas protetivas que obrigam o agressor a ficar longe dela, e punições mais duras para quem comete violência. Além disso, essas leis ajudam a conscientizar a sociedade de que a violência contra a mulher não é “normal” nem “aceitável”. Um estudo da ONU Mulheres (2021) mostra que, globalmente, 1 em cada 3 mulheres sofre violência ao longo da vida, e a maioria dos agressores é alguém próximo, como um parceiro ou familiar. No Brasil, o Atlas da Violência (2023) revelou que, em 2022, 1.437 mulheres foram assassinadas por feminicídio – ou seja, mortas simplesmente por serem mulheres.
As leis não são um “privilégio” para as mulheres, como alguns pensam. Elas são uma necessidade para corrigir uma desigualdade histórica e proteger quem, estatisticamente, sofre mais violência.
E Quando o Homem é a Vítima? Respondendo às Críticas
Muitos homens questionam: “Por que tantas leis para as mulheres? Algumas se aproveitam disso para prejudicar os homens! E quando é a mulher que agride o homem?”. Essa é uma crítica válida, e vou respondê-la com calma e clareza.
Primeiro, é verdade que homens também podem ser vítimas de violência. Eu já atendi homens que sofreram violência psicológica ou até física de suas parceiras. Esses casos existem e devem ser tratados com seriedade. A violência, seja contra quem for, é inaceitável. No entanto, os números mostram que a violência contra homens é muito menos frequente. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023), cerca de 90% das vítimas de violência doméstica no Brasil são mulheres. Isso não significa que os homens não sofram, mas que o problema é muito maior e mais comum entre as mulheres.
Sobre a ideia de que “mulheres se aproveitam das leis”, é importante dizer que isso pode acontecer, sim. Em qualquer sistema, há pessoas que agem de má-fé. Mas isso é uma exceção, não a regra. A maioria das mulheres que busca ajuda está realmente em perigo. No meu consultório, já vi mulheres com hematomas, cicatrizes e traumas profundos – elas não estão “inventando” nada. Além disso, as leis, como a Lei Maria da Penha, exigem provas e investigação. Não é tão simples assim “se aproveitar” do sistema.
Agora, para os homens que se sentem injustiçados: eu entendo a frustração. Ninguém gosta de se sentir acusado ou desprotegido. Mas, em vez de criticar as leis que protegem as mulheres, que tal lutarmos juntos para que todos – homens e mulheres – tenham proteção contra a violência? Se você, homem, sofreu violência, denuncie! Existem leis gerais que protegem qualquer pessoa contra agressões, como o Código Penal Brasileiro. O que precisamos é de mais diálogo e menos briga entre gêneros. A violência não é uma “competição” para ver quem sofre mais – é um problema de todos nós.
Como a Terapia Cognitivo-Comportamental Pode Ajudar?
Na minha prática como psicóloga, utilizo a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) para ajudar mulheres que sofreram violência a reconstruírem suas vidas. A TCC é uma abordagem prática que foca em mudar pensamentos e comportamentos que causam sofrimento. Muitas mulheres que passam por violência têm pensamentos distorcidos, como “Eu mereço isso” ou “Nunca vou conseguir sair dessa situação”. Esses pensamentos as prendem em um ciclo de culpa e medo.
Na TCC, trabalhamos para:
- Identificar pensamentos negativos: Por exemplo, uma mulher pode pensar que “se eu fosse uma esposa melhor, ele não me bateria”. Mostramos que a violência não é culpa dela – é responsabilidade do agressor.
- Desenvolver estratégias de enfrentamento: Ensinamos técnicas para lidar com o medo e a ansiedade, como respiração profunda e relaxamento.
- Fortalecer a autoestima: Muitas vítimas se sentem “despedaçadas”. A TCC ajuda a reconstruir a confiança e a autonomia.
- Planejar a segurança: Para mulheres que ainda estão em situações de risco, ajudamos a criar um plano para se protegerem e buscarem ajuda.
Um estudo de Beck (2011), criador da TCC, mostra que essa abordagem é muito eficaz para tratar traumas, como os causados por violência doméstica. Além disso, a TCC pode ser usada para trabalhar com agressores, ajudando-os a mudar comportamentos violentos e a lidar com suas emoções de forma saudável.
O que Você Pode Fazer?
A violência contra a mulher não é um problema só das vítimas – é um problema de toda a sociedade. Aqui estão algumas coisas que você pode fazer para ajudar:
- Seja um apoio: Se você conhece uma mulher que sofre violência, ouça-a sem julgá-la. Diga que ela não está sozinha e a ajude a buscar apoio, como a Central de Atendimento à Mulher (ligue 180).
- Eduque-se e eduque outros: Converse com amigos e familiares sobre a importância de respeitar as mulheres. Ensine seus filhos, desde pequenos, que homens e mulheres são iguais em direitos e dignidade.
- Denuncie: Se você presenciar ou souber de um caso de violência, denuncie. Você pode ligar para a polícia (190) ou usar canais anônimos, como o Disque 100.
Juntos por um Futuro sem Violência
Os números de violência contra a mulher no Brasil são um alerta: precisamos agir. Como psicóloga, vejo todos os dias o impacto devastador que a violência tem na vida das mulheres – física, emocional e socialmente. As leis que protegem as mulheres não são um “privilégio”, mas uma necessidade para corrigir uma desigualdade histórica. E, para os homens que se sentem injustiçados, convido a uma reflexão: em vez de criticar, que tal nos unirmos para construir uma sociedade onde ninguém – homem ou mulher – sofra violência?
A Terapia Cognitivo-Comportamental é uma ferramenta poderosa para ajudar as vítimas a se recuperarem e para ensinar agressores a mudarem. Mas a verdadeira mudança só virá quando todos nós – homens, mulheres, famílias, comunidades – trabalharmos juntos para dizer: “Chega de violência!”.
Referências Bibliográficas
- Ministério da Saúde (2023). Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Dados sobre violência contra a mulher, 2013-2023.
- ONU Mulheres (2021). Fatos e Números: Acabar com a Violência contra Mulheres e Meninas. Disponível em: [site da ONU Mulheres].
- Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. São Paulo: FBSP.
- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (2023). Atlas da Violência 2023. Brasília: IPEA.
- Beck, J. S. (2011). Cognitive Behavior Therapy: Basics and Beyond. 2ª ed. Nova York: Guilford Press.
- Brasil (2006). Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha. Diário Oficial da União.
- Brasil (2015). Lei nº 13.104/2015 – Lei do Feminicídio. Diário Oficial da União.
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